Economia


Associados em geral à discussão política andavam também os economistas da época, tanto mais que a disciplina de Economia Política era dada no quarto (e último) ano do Curso Jurídico de Olinda. Uma referência incontornável era a de Jean Baptiste Say, com o seu Tratado de economia política, de que só encontrei edições francesas (para a época) no catálogo da Biblioteca Nacional de Lisboa, não havendo nenhuma referência ao autor no ficheiro digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (para edições do século XIX). Também os dois títulos constantes do espólio de José Lino Coutinho, na Baía, eram em francês (Magalhães, et al., 2017 p. 242). O Curso completo de economia política, de que há uma edição francesa de 1840 (o anúncio, no Diário de Pernambuco, é de 1842) aparece também neste ambiente bibliográfico e não lhe encontrei (para a época) edição portuguesa na base de dados da Biblioteca Nacional de Lisboa. Há, em português, uma tradução do Catecismo de economia política ou instrução familiar, de 1822 e outra, feita por Adrião Pereira de Forjaz Sampaio, dos Elementos de economia política, já sancionados pela autoridade académica, que é uma “tradução livre” do “Catecismo”. Este “célebre catecismo de J. B. Say” era o manual aconselhado para a disciplina de Economia Política no Curso Jurídico de Olinda quando se preparou a sua criação, dele se devendo partir (assim os alunos quisessem aprofundar) para o seu Tratado e outros autores como “Smith, Maltus, Ricardo, Sismondi, Silmondi, Godwen, Storch, Ganih e outros” (Cachoeira, 1825).

Sampaio Bruno acha a influência de Say perniciosa em Portugal (considera-o mero divulgador), estranhando ao mesmo tempo a falta de uma tradução de Adam Smith (1723-1790) ou de Ricardo (1772-1823) – que no entanto o Correio brasiliense anunciava já em Maio de 1817. Reconhece a popularidade do autor entre os portugueses no século XIX, juntamente com a de “Michel Chevalier, Garnier, toda a cientifiquice que grulha nas publicações postas em vasta circulação pela casa Guillaumin” (casa responsável pela edição de 1840 do Curso completo de economia política). Associa-o à “espantosa mistificação da escola oriunda de Manchester” e, claro, a “outros dogmas, menos veneráveis, os do economismo chamado liberal”. De facto, Jean-Baptiste Say foi um defensor do “livre-cambismo” e um divulgador de Adam Smith. A crítica de Bruno dirigia-se precisamente contra a preguiça mental, que faria a classe intelectual portuguesa da época preferir a divulgação às obras de pensamento original e profundo. No entanto, terá sido Say a propor a divisão entre “produção, distribuição e consumo”, acreditando o autor que “um excesso na oferta gerava um excesso na procura”, o que levaria a que, “no regime de livre-comércio”, não houvesse nem “superprodução de bens, nem desemprego”. Era, de facto, a utopia liberal em marcha e não por acaso foi re-editado o Tratado de economia política, no Brasil, nos anos 1880 do século XX (1983 e 1986). No entanto, só encontrei até hoje referência ao seu nome nas fontes pernambucanas e portuguesas, pelo que não é garantido que tenha sido objeto de leitura em Angola.


Uma obra que reuniu filosofia, teoria política e análise económica, numa perspetiva oposta à de Say, foi a de Charles Fourier, incluído por Engels nos socialistas utópicos. Há menção a ela nas fontes angolanas, nomeadamente ao vol. V das Oeuvres complètes. As obras eram publicadas em Paris pela Sociedade para a Propagação e a Realização da Teoria de Fourier. Em 1861 iam já na 10.ª edição. Fourier deve ter sido, portanto, mais popular do que indicam algumas fontes.

François-Marie-Charles Fourier nasceu em Besançon a 7.4.1772 (o ano em que nasceu David Ricardo), sendo portanto cinco anos mais novo que J. B. Say. Morreu em Paris a 10.10.1837, por coincidência cinco anos depois de J. B. Say. Ele nasceu numa família de comerciantes e foi educado para se tornar também comerciante. Viajou e trabalhou pelo norte da Europa, engrandecendo (no regresso a França) a fortuna da família a comerciar produtos coloniais. Depois de uma prisão em Lyon e de uma incorporação forçada no exército revolucionário, em 1796 regressou à vida civil e propôs ao Diretório, em Paris, uma reorganização escrupulosa do exército. Em seguida começou a expor as suas ideias visando influir sobre a sociedade industrial no sentido de proteger as classes operárias. Por esse ou por outro motivo, o seu primeiro projeto de revista foi recusado pelas autoridades do Consulado em 1800. Começou por propor, na primeira obra (publicada sob anonimato em 1808), uma “harmonia universal” baseada na satisfação das paixões da humanidade (vistas como positivas e doadas por Deus) e tomando por exemplo as sociedades dos insetos. Em 1822, ano da independência do Brasil, defendia o regresso à terra, no Traité de l’association domestique agricole, obra que o tornaria famoso. É este livro que, re-editado em 1834 sob o título Traité de l’harmonie unniverselle, se encontra na biblioteca da antiga Câmara Municipal de Luanda. Pela assinatura que lhe está aposta, pertenceu a Joaquim Eugénio de Salles Ferreira, bibliófilo de quem já falei. As suas opiniões e leituras seriam no mínimo escutadas pela pequena elite intelectual angolense de natos, inatos e residentes. Assim a obra de Fourier ganha um particular interesse para nós.

Fourrier correspondeu-se com o socialista utópico Robert Owen (1772–1858) antes de publicar Aperçus sur les procédés industriels. Isso é importante, entre outros motivos porque Owen (um burguês como Fourier, cujo pai era agente dos Correios em Newtown, país de Gales), criou também comunidades ideais, de tipo cooperativo, sendo o primeiro a usar a palavra socialismo para designar uma doutrina política (a sua) e dos primeiros a declarar a religião como obstáculo ao progresso. Foi o falhanço da tentativa da «New Harmony» (comunidade ideal, criada nos EUA, que fracassou em menos de três anos) que o levou a pensar no lucro como principal causa dos males dos operários.

Fourier publicou os Aperçus mas entrou de novo em rutura financeira depois de uma série de maus negócios (outra semelhança com Owen, que perdeu oitenta por cento da fortuna com a New Harmony). A nítida formulação da doutrina social de Fourier aparece entretanto mais tarde, cimentadas que estariam as influências, em Le nouveau monde industriel et sociétaire (1829). Aí defende a sinergia e cogestão de associações comuns a produtores e consumidores. Compôs uma utopia baseada nos “falanstérios” (associações), que eram distribuídos por grupos de profissões e materializavam-se em palácios em forma de estrela. Nesses palácios, qualquer coisa entre centros comerciais e corporativos, podiam-se encontrar as lojas, as oficinas das diversas artes e uma cantina coletiva. Previa-se também uma educação coletiva, mas diversificada (em função das profissões). Os lucros eram repartidos entre o trabalho (5/12), o capital (4/12) e o talento (3/12). O talento ficava nitidamente mal servido, mas ainda que imperfeita, revelava preocupação de justiça social. Em 1832 discípulos seus criaram uma revista (Le phalanstère ou la reforme industrielle) onde ele colaborou, vivendo agora apenas da venda dos seus livros. Alguns discípulos criaram mesmo um “falanstério”, mas o mestre criticou-os dizendo que se tratava de uma caricatura das suas ideias. Em 1835 publicou La fausse industrie e em 1836 Victor Considérant (um seu discípulo) fundou a revista La phalange. No ano seguinte Fourier morreu de crise cardíaca, sendo enterrado em Montmartre. A falange, como sabemos, tornou-se com o tempo corporativa e fascista…

Influenciado por Newton, Fourier achava possível aplicar a lei universal da atração à atração passional, usando as vocações e desejos para criar uma sociedade harmoniosa, apesar de desigual, e onde cada um completasse os outros. Ele criticava o liberalismo e a revolução francesa (embora partilhasse com ela alguns ideais), juntando-se a Saint-Simon quando lhe apontava o facto de ter sido mais uma revolução política do que social e económica. Associou o capitalismo à barbárie (a quarta época da Humanidade – após o Éden, a Selvajaria, o Patriarcado), falando numa quinta idade, a da harmonia universal, matematicamente calculada. As combinações matemáticas não eram fortuitas e mitos como o do Quinto Império encontravam aqui uma inesperada renovação. Não só eles. Por exemplo, as paixões humanas eram 12 (como os apóstolos de Cristo) e o número de habitantes de um falanstério seria de 1620, sendo o número calculado a partir dos 810 tipos psicológicos que, segundo ele, existiam. As horas de trabalho dedicadas a cada métier (cada profissional trabalhava em diversas funções dentro do seu falanstério) eram calculadas também: entre uma hora e meia a duas horas por dia para cada tipo de tarefa.

Podemos hoje chamar anedóticos estes aspetos da sua teoria e muitos dos comentadores e críticos comprazem-se em mostrá-lo. Fica, porém, da obra que nos legou, a importância da educação sentimental e a crença (típica de muitos outros socialistas) no condicionamento das pessoas a partir do ambiente e da educação, paradoxalmente ligada à ideia de que a sua proposta era a primeira que não ia contra a natureza humana (apesar de não reconhecer que o egoísmo e a ambição faziam parte de cada um). Fica também o reconhecimento da diversidade, erigida em valor profissional, hoje recuperável perante uma sociedade de simulacros e de profissões especializadas que tenta superar essas suas limitações. E fica a larga influência que dele se regista em romancistas (Flaubert, Balzac) e poetas (A. Bréton), influência que deve muito ao poder mítico das suas teorias.

Quanto a aspetos retóricos, o seu estilo era confuso, como se viu algo mítico também, para além de manifestar um enorme autoconvencimento. Ao que parece, tinha facilidade em satirizar, o que lhe terá compensado os desaires, entre os quais este, mais uma vez anedótico: uma vez por semana, sempre no mesmo dia, convidava mecenas para jantar, para que se interessassem pela aplicação das suas ideias. Ao que parece, nesses dias, jantou sempre sozinho, dialogando consigo próprio. Todos os discípulos que tentaram erguer falanstérios (entre os quais Victor Considérant, nos EUA) tiveram um rotundo fracasso, que lembra o dos seus negócios, pois ironicamente só ganhou dinheiro com a exploração colonial, a pior das facetas do capitalismo do seu tempo e do nosso, já neo-colonial.

É possível que o livro encontrado na Biblioteca da então Câmara viesse reforçar, no meio local, alguma tendência para idealizar a vida no campo e contribuísse igualmente para o desenvolvimento das ideias socialistas moderadas e utópicas. Elas tomam corpo no fim do século XIX e princípios do seguinte em Angola, sobretudo com a geração da Luz & crença, e há uma tímida lexicalização socializante num dos últimos poemas conhecidos de José Bernardo Ferrão – sem dúvida o melhor (leia-se mais à frente o comentário). O Dicionário de Vieira, atualizado e aumentado, que aparece na Biblioteca da Administração Municipal de Benguela, tem já a palavra “comunismo”, com um resumo preciso do conceito, embora não usando propriamente vocabulário comunista[1]. Mas não encontrei ainda uma marca segura da leitura dos seus livros em artigos e obras de angolanos. No Brasil encontrei – sem busca exaustiva – comentários elogiosos à sua pessoa e obra em O globo (Anónimo, 1844). Aí ele é dado como “célebre” (p. 3) criador do “memorável sistema do imortal Fourier” (p. 4). Mas, apesar da existência (precária) de um falanstério no país, a sua doutrina é considerada “inda estranha” no Brasil.










[1] “Systema de uma seita socialista, que pretende fazer prevalecer a comunidade dos bens, isto é, a abolição da propriedade individual e a entrega de todo o haver social, nas mãos do Estado, que fará trabalhar, e distribuirá os produtos do trabalho pelos cidadãos”. 



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